Em 21/10/2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil requereu que o Supremo Tribunal Federal declarasse que a anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 aos crimes políticos e conexos não se estendia aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar, porque essa interpretação extensiva era absolutamente incompatível com preceitos fundamentais da Constituição de 1988 (ADPF nº 135).
Na ação de controle abstrato de constitucionalidade, argumentou a OAB, sob iniciativa política de seu Presidente, o sergipano Cezar Britto, e condução intelectual do jurista Fábio Konder Comparato, que a Constituição de 1988, além de restaurar a normalidade político-institucional do país, sobre estabelecer que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República (art. 1º, III), assegura que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) e que a lei considerará insuscetível de anistia a prática da tortura. Nesse sentido, reproduziu a vedação internacional à tortura (Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU – 1948).
Disse mais, que o Estado Brasileiro, ao ratificar a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou castigos cruéis, desumanos ou degradantes, comprometeu-se a “assegurar que suas autoridades competentes farão uma pronta e imparcial investigação, onde quer que exista um fundamento razoável para acreditar que um ato de tortura foi cometido em qualquer território sob sua jurisdição” (Art. 12), apontando, ainda, que sendo a tortura um crime contra a humanidade, deve ser considerado um crime imprescritível e “inanistiável”, ainda mais quando essa anistia se dê por interpretação extensiva de anistia concedida a crimes políticos (como se houvesse qualquer conexão lógica entre crimes políticos e crimes contra a humanidade, como o crime de tortura, por exemplo) e, mais ainda, seja autoconcedida, autoanistia sistematicamente repudiada pelas Cortes Internacionais de Direitos Humanos.
O Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento dessa ação em 29/04/2010, decidindo – infelizmente – pela sua improcedência. A maioria dos Ministros do STF (vencidos apenas os Ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Britto) julgou a ADPF improcedente tomando como principal fundamento o de que teria havido um “amplo acordo” nacional, envolvendo civis e militares, que teria levado à aprovação da lei de anistia e que incluiria a anistia aos crimes comuns, porque o entendimento que prevalecera à época (1979) era o de que o apaziguamento de ânimos era imprescindível à transição para a democracia, sendo, assim, impossível reinterpretar a lei de anistia, trinta anos após, sob a perspectiva atual, desconsiderando o contexto histórico que levara à sua aprovação trinta anos antes.
Pois bem, a conjuntura pode estar sendo modificada, quinze anos após!
Impulsionado pelo impacto da história descrita no excelente filme “Ainda Estou Aqui” – no voto, aprovado à unanimidade pelo STF, o Relator Ministro Flávio Dino consignou expressamente: “No momento presente, o filme “Ainda Estou Aqui” – derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice) – tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho” – o STF, em 14/02/2025, reconheceu a existência de repercussão geral das questões constitucionais debatidas no recurso extraordinário (ARE) 1501674, e vai analisar se a Lei da Anistia alcança os crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura militar e que permanecem até hoje sem solução. E, em 18/02/2025, o Ministro Edson Fachin determinou a tramitação na Corte de mais dois recursos que discutem a responsabilidade de agentes estatais por supostos crimes cometidos durante a ditadura militar. São dois casos em que o Ministério Público Federal (MPF) contesta decisões que rejeitaram as denúncias com base na Lei da Anistia.
Essa sinalização para o julgamento desses processos abre margem para que os embargos de declaração interpostos pelo Conselho Federal da OAB na ADPF nº 153 sejam finalmente julgados, juntamente com a ADPF nº 320, proposta pelo PSOL em 2014, na qual é pedida a declaração de que a Lei de Anistia, de modo geral, não se aplique aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos e, de modo especial, que a Lei de Anistia não se aplica aos autores de crimes continuados ou permanentes, tendo em vista a expiração dos efeitos desse diploma legal em 15/08/1979.
Todo esse contexto, na mesma semana em que a Procuradoria-Geral da República propôs a denúncia do ex-Presidente da República Jair Bolsonaro e de diversas outras ex-autoridades, inclusive de altas patentes militares, pelos crimes de golpe de estado e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, por um conjunto sistematizado e articulado de práticas, com uso da máquina pública, que redundaram na intentona de 8 de janeiro de 2023, legitima a expectativa da cidadania de que, finalmente, tenhamos uma caminhada mais efetiva para a justiça de transição, SEM ANISTIA, para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça!